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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Águas paulistanas: temor e resignificação

Sociólogo Valério Igor P. Victorino

No próximo dia 22 de março de 2011 será comemorado mais uma vez o dia mundial da água. Esta data foi instituída pela ONU em 1992 para alertar a humanidade sobre a gravidade dos riscos da contaminação e perda dos recursos hídricos em todas as suas formas. Mais especificamente para fazer todos os usuários de água do planeta crerem que a água doce do planeta não é infinita e é muito mais vulnerável às ações humanas que imaginávamos.

O Brasil aparentemente vive uma situação confortável, por deter em seu território mais de 13% dos recursos de água doce do planeta. Contudo, quando observamos mais de perto verificamos que estes recursos estão concentrados justamente na porção do território nacional que possui o menor contingente de população, o Norte do país.

No Sudeste, a região mais densamente povoada, a água é um problema há mais de cem anos, quando os moradores da capital paulista já reclamavam a falta de água tratada e encanada para o abastecimento. Assim diziam os manifestantes em meados do século XIX: não é bonito que os vereadores gastem dinheiro em construir uma linda estrada ligando o centro da cidade com a Penha e deixem de prover o recurso mais valioso para a vida humana. “Água, senhores vereadores, queremos água!”

Durante o final do século XIX e todo o século XX as questões decorrentes dos recursos hídricos estiveram entre os principais condutores das políticas urbanas na capital paulista, seja por conta da falta de água para abastecimento público, seja por conta prejuízos decorrentes das fortes inundações, seja pela poluição dos corpos hídricos, seja pela complexidade dos múltiplos usos das águas (onde a necessidade de energia elétrica monopolizou e determinou os rumos de exploração deste recurso na região metropolitana), seja pelo impacto ambiental da ocupação urbana por população carente das zonas produtoras de água, etc.

O poeta que criou o hino nacional brasileiro construiu uma forte imagem em nosso imaginário, com Dom Pedro bradando forte na margem de um rio com um volume considerável de água, pelo menos para ser chamado de RIO. É lamentável saber que este tão importante curso de água (e aqui não importam as dimensões) foi vítima de políticas urbanas que levaram à sua degradação por esgotos domésticos e industriais e finalmente ao “sepultamento” sob o leito de ruas a avenidas da bacia hidrográfica. Na capital paulista os rios e riachos foram transmutados em avenidas. Assim, o rio Ypiranga passou a se chamar Av. Ricardo Jafet e o rio Tamanduateí, que já foi tão importante para o abastecimento da população, encontra-se espremido em um canal entre as duas faixas da avenida do Estado.

Os rios e riachos de São Paulo formam uma rede de mais de 1500 quilômetros e atualmente são lembrados somente quando algum trovão de temporada retumba nos ouvidos dos ribeirinhos, das autoridades da defesa civil, dos motoristas que trafegam pelas marginais etc. Morar perto dos riachos e rios associa-se a morar em área de risco.

As políticas urbanas criadas no século XX para equacionar a relação entre a cidade e seus recursos hídricos buscaram canalizar ou enterrar os cursos de água, arrancando deles toda a naturalidade característica, seja em termos de pureza ou em termos de sinuosidade. Deste ponto de vista, o dia mundial da água teria uma importância vital para São Paulo, que tendo contaminado grande parte dos seus recursos endógenos é obrigada a importar água de bacias hidrográficas distantes mais de 100 quilômetros, de populações que têm suas próprias necessidades a serem satisfeitas. Um conflito de interesses por recursos hídricos se aproxima.

Somente no século XXI, depois de muita pressão do movimento de ecologização da sociedade, é que os princípios de uma nova relação entre cidade e natureza começam a ser introduzidos na elaboração e gestão das políticas urbanas, buscando qualificar o planejamento urbano com categorias socioambientais. Neste sentido as políticas urbanas migram de programas como o antigo PROCAV (Programa de Canalização de Córregos, Implantação de Vias e Recuperação Ambiental e Social dos Fundos de Vale, 1987/1994) para o Programa de Recuperação Ambiental de Cursos D’Água e Fundos de Vale, instituído pelo Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, Lei 13.430 de 2002. Trata-se de uma mudança significativa no modo de gerir os riachos da cidade, estabelecendo como ação estratégica a implantação de parques lineares contínuos. Os parques lineares são intervenções urbanísticas que visam recuperar para os cidadãos a consciência do sítio natural em que vivem.

Dentro desta nova ótica de gestão urbana trata-se de reverter um quadro de impermeabilização e degradação que tem mais de 100 anos de história, se considerarmos o momento em que a cidade emerge como uma metrópole de importância nacional. A inovação em termos de política pública revela-se pelos objetivos explicitados do Programa de Recuperação Ambiental de Cursos D’Água e Fundos de Vale. O primeiro objetivo é ligado a obras físicas de intervenção urbanísticas nos cursos d’água, buscando ampliar as áreas verdes permeáveis ao longo dos fundos de vales, de modo a diminuir os fatores causadores de enchentes, aumentando a penetração no solo das águas pluviais. Outros objetivos tratam do envolvimento da população com os projetos e nesse sentido busca-se ampliar os espaços de lazer ao longo dos cursos d'água e fundos de vales não urbanizados e mobilizar a população envolvida em cada projeto de modo a obter sua participação e identificar suas necessidades e anseios quanto às características físicas e estéticas do seu bairro de moradia. Dentro deste programa está prevista a motivação de programas educacionais visando aos devidos cuidados com o lixo domiciliar, à limpeza dos espaços públicos, ao permanente saneamento dos cursos d’água e à fiscalização desses espaços.

O Programa de Recuperação Ambiental de Cursos D’Água e Fundos de Vale trata de córregos não canalizados, o que deixa os demais córregos que já foram “sepultados”, de fora do programa. Em se tratando destes corpos d’água, há a proposta de descanalização ou renaturalização de rios e córregos do município de São Paulo, como parte de uma estratégia de repensar a complexidade da macrodrenagem e os problemas de enchentes na cidade. “Entende-se por renaturalização de rios o processo de trazer ao rio sua condição mais natural ou original possível” (Souza; Kobiyama, 2003, apud Brocanelli & Machado, 2008). Trata-se de uma proposta inovadora, e por isso, envolta de polêmicas. O que importa ressaltar neste breve texto é o fato desta proposta de renaturalização valorizar e reconhecer a identidade ambiental do território colocando os cursos de água da paisagem da metrópole “como elemento de integração da relação entre homem e natureza.” (Brocanelli & Machado, 2008).

Nos últimos 20 anos a sociedade paulistana tem despertado para a crise ambiental e isto tem repercutido na mudança de paradigmas de gestão dos rios e córregos da cidade. Está emergindo um forte movimento de resgate do que foi sacrificado em nome do progresso. A considerar o dinamismo da sociedade paulistana, o poder público e a comunidade podem contar com os recursos financeiros, sociais e intelectuais para construir as condições necessárias para revolucionar o padrão urbano ambiental, desenhando uma cidade mais agradável de se viver.


Para saber mais
Site

OS RIOS FORAM ASFALTADOS

http://issonaoenormal.com.br/post/os...ram-asfaltados [Aqui vc. encontra um mapa da cidade de 1924, mostrando os 1500 kms de rios e riachos; descubra o córrego enterrado mais próximo de vc.]

Filme-documentário:

SOBRE RIOS E CÓRREGOS. Direção: CAMILO TAVARES; 60 minutos, 2010 [Documentário exibido no Festival Tudo é verdade de 2010. Em breve este documentário será exibido pela UMAPAZ]

Textos

BROCANELI, Perola; STUERMER, Mônica. Renaturalização de rios e córregos no município de São Paulo. In: Exacta. São Paulo V. 6, nº 1, p. 147-156 jan/jun 2008.

VICTORINO, Valério Igor P. Uma Visão Histórica dos Recursos Hídricos na Cidade de São Paulo. In: Revista Brasileira de recursos hídricos V. 7, nº 1 Jan/mar 2002 51-68

Legislação

PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/plano_diretor/index.php

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