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segunda-feira, 2 de abril de 2012

Por algumas árvores a mais


Por Marli Olmos e Bettina Barros

O tradicional chope depois do expediente foi marcado naquele final de tarde pelo soco na mesa e o grito que veio junto. "Conseguimos!", vibrou, ao ver os colegas de trabalho, o jovem José Ricardo Hoffman, então responsável pela análise ambiental de novos projetos imobiliários na maior cidade do país. Ele levava a notícia de que uma mangueira frondosa localizada em um terreno pronto para edificação na zona leste de São Paulo seria mantida em pé. "Aqui é assim, a gente briga uma por uma."

A notícia com sabor de vitória para a equipe de técnicos da Secretaria do Verde e Meio Ambiente, o órgão responsável pela manutenção da cobertura vegetal de São Paulo, foi batalha perdida para alguma incorporadora da cidade. Sob o olhar de uma parte cada vez maior da comunidade, aquele que salvou a mangueira será aclamado herói e o que pretendia matar a árvore, bandido. Mas nessa luta diária pelo crescimento inexorável da metrópole não há bonzinhos nem malvados. O que está em discussão é mais complexo. A dúvida é: que tipo de lugar teremos para viver?

Dona de uma das leis de compensação ambiental mais rígidas no país, São Paulo ainda tenta entrar em acordo consigo mesma. A cidade que não dorme, não anda e não respira sobe a alturas cada vez maiores para acomodar seus 11 milhões de habitantes. Entre 2000 e 2011, o número de apartamentos lançados na cidade pulou de 29 mil para 37 mil ao ano, um ritmo que talvez só não impressione os chineses. Esse exorbitante processo de verticalização trouxe novos desafios a urbanistas e ao poder público. Moradia é preciso, mas também área permeável para escoar as chuvas de verão e copas para aliviar a panela de pressão que se cria quando a temperatura aumenta.

Por sua pujança econômica, São Paulo talvez seja a melhor representação dessa dicotomia. A pressão imobiliária, que atingiu seu pico com a onda de abertura de capital do setor em 2006, criou um senso de urgência maior. Na corrida pelo retorno rápido do investimento, sai melhor quem encontrar o terreno primeiro, prepará-lo antes, construir e colocar no mercado em 12 meses. E nesse ciclo quase sempre os desmates são inevitáveis. Ou eram.

Diante do quadro que se formava, a Secretaria do Verde se armou. Desde 2005 criou e aprimorou quatro portarias - 09/2005, 05/2006, 26/2008 e 44/2010 - que fecharam o cerco à expansão a todo custo. A mensagem do governo foi clara: precisamos do seu prédio, mas das árvores no entorno também.

"Não podemos ficar na ditadura verde, que estanca a expansão da cidade, e não podemos ficar na ditadura econômica, que prevê o crescimento a qualquer custo", pondera o secretário Jorge Eduardo, responsável pelo cobiçado carimbo do licenciamento ambiental na cidade. "Não é o nosso desejo impedir a construção de prédios ou brecar a expansão em São Paulo. Mas sustentabilidade é o equilíbrio entre o econômico, o social e o ambiental."

Que o desenvolvimento sustentável é o único caminho, ninguém questiona. Esse será um dos temas centrais nas discussões sobre os rumos do planeta na Rio+20, que ocorrerá em junho, no Brasil. Mas ele continua sendo um desafio que não saiu do papel. Apesar das evidências, até o momento o assunto atraiu pouca atenção no debate político que se inicia entre os principais nomes cotados para assumir a gestão de São Paulo a partir de 2013. Como devemos crescer permanece sem resposta.

Na prática, o que se nota é que o rigor da lei ainda não garantiu uma mudança de cultura nos negócios. É em clima de toma-lá-da-cá que continuam a ser definidos muitos dos processos de licenciamento para novos edifícios. Construtoras, incorporadoras e engenheiros ouvidos pelo Valor admitem que a fiscalização aumentou à mesma proporção das punições, sejam elas financeiras ou não.

A principal modificação trazida pelas portarias foi a determinação de que a densidade arbórea de uma área tem de ser a mesma após a construção do empreendimento. Isso significa que um terreno com 30 árvores antes da edificação deverá manter 30 árvores ao fim do projeto, de forma a garantir que a cobertura vegetal da cidade não seja afetada. Além de limitar corte e transplante no terreno, as novas regras impuseram ao setor privado o ônus de plantar e manter áreas verdes como compensação ambiental de seus projetos.

O impacto no mercado veio de diferentes formas. A maneira de se olhar para um terreno foi uma delas. Áreas muito florestadas passaram a ser um problema a quem tem pressa. "Dependendo do momento em que a empresa está, esses terrenos não são desejados ", diz Cláudio Bernardes, presidente do Secovi-SP.

Quanto mais árvores, alegam os incorporadores, mais tempo será necessário para a análise ambiental e maior será o custo da compensação. José de Albuquerque, diretor da Brookfield Incorporações - empresa listada em bolsa cujos lançamentos registraram um incremento de 32% em 2011, totalizando R$ 3,9 bilhões - diz que já deixou de comprar um terreno ao perceber que o licenciamento demoraria devido ao número de árvores. "Optamos pela liquidez", diz o executivo, ecoando a opinião de outros concorrentes.

O modus operandi habitual dos anos 80 e 90 -- pôr abaixo as árvores indiscriminadamente - foi revertido a um cuidado nos canteiros de obra impulsionado pela mão pesada da lei. As portarias paulistas reduziram o tamanho das árvores sob proteção. O padrão passou de 5 para 3 centímetros de DAP (diâmetro à altura do peito), a curiosa denominação no vocabulário ambiental que representa a espessura mínima do caule. Árvores nativas da Mata Atlântica são preciosas. Só podem ser derrubadas se estiverem comprometidas fisicamente. Espécies em extinção jamais podem ser mexidas, sob pena de crime ambiental.

Em virtude dessas regras, os projetos arquitetônicos são hoje obrigados a levar em conta a posição de cada árvore preservada. Albuquerque, da Brookfield, cita como exemplo o caso de um condomínio residencial construído no bairro de Campo Belo, na zona sul, no qual foi preciso fazer um recorte em "L" na garagem para preservar uma árvore de raízes profundas que não teve a remoção autorizada pelos técnicos da secretaria. Por causa desse "dente" na planta, a incorporadora desenvolveu um segundo pavimento de subsolo para acomodar as vagas de veículos previstas, o que teve o efeito maléfico (para o bolso do consumidor) de encarecer a obra e, portanto, o preço dos imóveis.

Mas o maior incômodo, dizem representantes do setor de construção, são mesmo as compensações. São Paulo tem três viveiros, que produzem 1,64 milhão de mudas por ano. Mas, com o crescimento do ritmo das compensações, a capacidade desses espaços está praticamente esgotada. Pagar, por sua vez, é a opção menos aceita pelo município e, por isso, tem o fator de conversão mais caro. O município pretende também afastar as incorporadoras do trabalho mais fácil - dar o dinheiro - e forçá-las a arregaçar as mangas.

"Nós bem que tentamos pagar, mas não dá certo. Para nós, a segunda melhor opção é entregar mudas. Não somos especialistas em plantas. Nosso negócio é construir", diz Albuquerque, da Brookfield. Entre 2009 e 2010, a Brookfield ergueu dez empreendimentos na cidade, que resultaram na doação de 53,7 mil mudas e na reforma e manutenção de três praças públicas na rodovia Raposo Tavares. "Em dias de jogo de futebol, a gente fica rezando para nenhum torcedor contrariado destruir aquilo. Além de ter de replantar a área, a Prefeitura multa a gente. Não tem perdão nem em dia de jogo", diz o executivo.

"A coisa chegou a tal ponto que a gente nem planta mais aquelas mudinhas nos stands de venda. Porque se plantar, não pode mais arrancar. É uma coisa de louco", diz Luciano Radunz, engenheiro de gestão de obras da Requadro Incorporações, com forte atuação na zona central da cidade. "Agora, levamos vaso.”

Segundo Albuquerque, a compensação ambiental representa de 0,5% a 1% do VGV (valor geral de venda) do empreendimento. "Isso equivale, por exemplo, a elevar em até 50% o imposto ITBI recolhido pela prefeitura na averbação do imóvel", diz. "Não é pouco."

A necessidade de calcular o custo da compensação e conferir se o empreendedor terá os lucros que imaginou fez aumentar a procura pelas consultorias ambientais. Há dez anos, o engenheiro agrônomo Jorge Tauile Youssef começou a fazer esse tipo de trabalho. Logo teve de contratar uma equipe e abrir uma empresa, a Arvoredo Consultoria. "As empresas começaram a sentir no bolso a evolução da legislação", diz. Youssef nota que muitos empresários estão parados no tempo em que compravam um terreno, derrubavam a vegetação e só depois discutiam a compensação. Ele costuma sugerir aos clientes um diagnostico antes da compra do terreno para identificar restrições ambientais. Mas, muitos "continuam dando murro em ponta de faca". Segundo o engenheiro, a primeira pergunta que a maioria faz é: "Quantas árvores poderei cortar?"

"Ninguém é maluco de se opor à lei porque sempre vai aparecer alguma ONG e a comunidade para defender o verde", diz o diretor de relações institucionais da MRV, Sérgio Lavarini. Segundo ele, o paisagismo passou a fazer parte dos projetos. A MRV "foge" dos altos preços de terrenos na area central de São Paulo, mas coleciona ações de compensação ambiental em outras cidades. Em contrapartida à construção de um conjunto habitacional com 568 unidades, no bairro de Buritis, em Belo Horizonte, a construtora conserva, no mesmo bairro, o parque Aggeo Pio Sobrinho, com 600 mil metros quadrados de vegetação da Mata Atlântica e Cerrado, diferentes tipos de répteis, mamíferos e aves e três nascentes.

A evolução da legislação também leva à estocagem de terrenos. "Preciso ter estoques para 12 meses porque um terreno comprado neste ano, por exemplo, não estará disponível para ser colocado no mercado [já edificado] no ano que vem", diz o corretor da SFSA Desenvolvimento Imobiliário Sérgio Ferrador.

Quem visita a Secretaria do Verde e Meio Ambiente, instalada em um prédio modesto no bairro do Paraíso, mal consegue enxergar os funcionários. Pilhas de processos sobre as mesas escondem técnicos, engenheiros agrônomos e o próprio secretário, Eduardo Jorge, um médico esguio que comandou a Secretaria da Saúde na gestão de Marta Suplicy.

Apesar do volume de trabalho, ninguém ali aceita queixas de demora. O ritmo dos processos foi acelerado em 2010, quando a secretaria reforçou o quadro de pessoal. Youssef, da Arvoredo, confirma que em uma licença simples, o chamado Termo de Compensação Ambiental, não leva mais do que 60 dias para sair. Antes chegava a seis meses e até um ano, diz. O problema é que o licenciamento envolve outras áreas, como habitação e transporte. E a obra só sai mediante carimbos de todas.

Além disso, a secretaria passou a comparar a planta do projeto que recebe com a que corre paralelamente na area de habitação. Trata-se de cuidado adicional, tomado a partir de constatações, no passado, de que às vezes o projeto que ia para uma pasta era diferente da que seguia para a outra, uma forma de driblar as exigências de cada uma. "Muitos se queixam de demora porque não contam o tempo em que o processo ficou parado com eles mesmos. Licenciamento é um jogo de bate e rebate", afirma o secretário. Eduardo Jorge não é o tipo que dá moleza, segundo contam empreendedores e técnicos. "Temos um lema: transparência, rigor e rapidez. Mas nessa ordem."

Desde a publicação da portaria 44, em maio de 2010, até o fim de 2011 foram emitidos 521 Termos de Compensação Ambiental. Nesse total, foi definido o plantio de 71,7 mil mudas no próprio terreno e o plantio externo (na calçada ou entorno do empreendimento) de 47,8 mil mudas. Há um ano criou-se a opção do depósito em dinheiro no Fundo Especial do Meio Ambiente (Fema), quando esgotadas as possibilidades de compensação. Isso gerou R$ 4,380 milhões, um dinheiro que, segundo a resolução determina, se destina exclusivamente à compra de terras para implantação de áreas verdes. Segundo a secretaria, da publicação da portaria, até o ultimo dia de 2011, foram preservadas 20.512 árvores.

A pressão popular para a preservação tem levado Eduardo Jorge a realizar apresentações públicas - além das audiências previstas em lei - quando determinada obra tende a criar polêmica. É o caso do Instituto de Engenharia, uma área com 195 árvores, na Vila Mariana. O instituto está prestes a derrubar o atual edifício para construir um novo e pede autorização para transplantar parte da vegetação e derrubar espécies doentes ou mortas. A cena de derrubada de uma árvore, mesmo morta, costuma mobilizar a vizinhança, nem sempre a par da situação. Mas os agrônomos da prefeitura já se depararam também com atos de má-fé. O engenheiro Sérgio Arimori, do departamento de proteção e avaliação ambiental, conta o flagra do caso em que haviam despejado óleo diesel sobre um caule raspado.

"É comum sermos acionados por vizinhos de andares mais altos, os primeiros a perceber quando alguém tenta cortar uma árvore que fica mais escondida, no fundo de algum prédio. Recebo telefonemas até de outros bairros", diz a presidente da Associação Amigos de Bairro Cerqueira César (Sammorc), Célia Marcondes, que sugere a criação de um serviço, na internet, para que a população possa acompanhar um processo de licenciamento.

O baiano Luiz Carlos Silva, mestre de obras há 29 anos da Davilar Projetos e Empreendimentos, diz que a preocupação popular é um movimento recente e real. Responsável pela mão de obra de uma construção nos Jardins, ele diz que a remoção das árvores do terreno - pitangueiras e palmeiras entre elas - alardeou vizinhos e transeuntes, que acionaram o disque-denúncia da prefeitura. "Já vieram uns dez fiscais aqui ver se a gente não estava derrubando árvore. Mas vocês acham que eu sou louco? Dá multa de R$ 10 mil por cada uma delas", diz Silva, mostrando que conhece a lei.

O receio do efeito de uma declaração desfavorável à causa ambiental também assusta os grandes empreendedores. Nenhuma das maiores construtoras consultadas pela reportagem do Valor quis comentar o assunto. Mas nem todos poupam a Secretaria do Meio Ambiente. "Está vendo essas pessoas?", pergunta o presidente do Metrô de São Paulo, Sérgio Avelleda, apontando um dos monitores instalados em sua sala, no centro da cidade. São quase 18h de uma terça-feira e a plataforma de embarque e desembarque na estação Sé está lotada de passageiros. "É a pressão dessa gente que me exige não perder tempo nas obras", diz. Avelleda defende tratamento diferenciado para obras como a do Metrô, que, ao final das contas, segundo ele, serão positivas no balanço da conta ambiental. "É diferente de um prédio, que traz mais gasto de energia, de água e provoca mais trânsito. Já o Metrô ajuda a reduzir a emissão de CO2 e os acidentes de trânsito", destaca.

Avelleda diz não ser contra as exigências para o licenciamento. "Mas uma obra como a do Metrô deveria ser autorizada a começar enquanto corre o processo de licenciamento. A fiscalização se incumbiria de acertar problemas e até suspender a obra caso a compensação não fosse cumprida", completa.

Para ele, a exigência de que um processo, que já passou pela Secretaria do Verde e Meio Ambiente volte, para receber avaliação final da mesma equipe, depois de já ter passado por todas as etapas necessárias ao licenciamento, eleva poderes de uma única pasta. "A Secretaria do Meio Ambiente está se transformando numa super autoridade", diz o executivo. "Com esse olhar amplo sobre as ações do Estado, a autoridade ambiental está suplantando a administração pública", destaca.

As obras do metrô estão na mira do Meio Ambiente. Um dos casos mais polêmicos foi o licenciamento do trecho 1 da linha, em forma de monotrilho, que ligará Vila Prudente à avenida do Oratório. Sérgio Arimori conta que além de ajustar cortes de árvores sugeridos, o engenheiro que analisou o processo recusou as justificativas do Metrô para construir um pátio de manobras dos trens.

O traçado proposto atingiria uma grande área de vegetação nativa, com exemplares de quaresmeira, pau-ferro, cedro e sibipiruna. O secretário Eduardo Jorge indeferiu o pedido, com base no parecer técnico em dezembro de 2010. Em maio do ano seguinte, um novo pedido chegou à secretaria com um traçado diferente, que previa a desapropriação de área ao lado do projeto inicial, onde antigamente funcionava a fábrica de linhas Corrente.

Para Eduardo Jorge, o processo de licenciamento é uma questão própria da complexidade de uma cidade como São Paulo. "Às vezes somos acusados de retardar o desenvolvimento econômico. Assim como também não é justo achar que agora é a vez da ditadura do verde, do mesmo jeito que no século passado havia a ditadura do econômico." Quem sabe um dia os dois lados dessa batalha se sentem à mesma mesa, para compartilhar um "happy hour" depois do expediente.



Reportagem retirada de: http://www.valor.com.br/cultura/2594610/por-algumas-arvores-mais

Um comentário:

  1. Não consigo encontrar as mencionadas Portarias da matéria. Vocês poderiam mandar o link?

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